Rio de Janeiro, 30 de abril de 2021
lá na terra ninguém dança
dizem que faz mal ao coração
não há jovem, nem criança
faz mal à solidão
...
Lá na terra não há flores
A beleza faz jejum
Não há dor nem há doença
A morte vem sem sentido algum
Há um deus que é de todos
Mas não chega a nenhum
trechinhos de Terra da Saudade de Luisa Sobral, música que está no álbum Manga da Mayra Andrade. clique aqui para escutar
Saudade é o terreno que constantemente eu revisito, nele tem uma mistura de dor e amor, e em sua ausência tem sobretudo o buraco no peito do agora. É engraçado que quando eu escuto a música da Mayra eu imagino um lugar feliz, com dança, flores e acho que a única coisa que se mantém da letra é a falta de dor e de doença. Talvez pelo ritmo que a conduz, que me faz dançar, eu negue a realidade da composição, tem uma toada de nostalgia que me coloca num lugar que eu gostaria que fosse cantado e vivido.
No álbum da Mayra também tem outra música que a saudade salta pra contar história: Guardar Mais escrita por Sara Tavares clique aqui para escutar
Saudade já chegou
E embalou na cadeira de baloiço da vovó Eugénia
Não há crise que resista para sempre
Quero ar para dançar mais
Se doer, sopra calor
Não há dor que resista ao baloiço da vovó Eugénia
Aí é outra região que a saudade mora e convida, embalo de carinho que tenta afastar o que machuca. Abraço o verso “Não há crise que resista para sempre” e busco o ar para dançar no meio da sala, cozinhando, começando um novo dia, com esperança de estar mais perto do lugar que essa saudade tem residência e de ser possível sentir esse calor suave na realidade.
Hoje eu convido você a caminhar comigo em mais uma viagem no tempo, teletransportando do agora para outro instante que tem a tão falada saudade como anfitriã. Vamos visitar a casa quintal:
Ali o pé descalço corre sem medo, o cuidado acolhe todo espaço, deixa a brincadeira acontecer, é vida, alimento, terra da saudade que não para de desenhar memórias.
Mistura de lembranças da casa da minha avó. O olhar que encontra descanso no verde presente na estrada, presente no rio e no quintal. Lugar que me faz sentir acolhida pelas conversas que circulam de dia, refeições, brincadeiras e afazeres, que dá tempo pra fazer tudo e ainda cabe espaço pra cochilos sossegados depois do almoço. De noite é sentar com a cadeira na calçada, contar tudo que é história e relembrar até as de assombração, e não importa a idade, depois de todos causos contados, olhar pro quintal no escuro me atiça o medo e a imaginação.
Sobre o processo da casa quintal: comecei com um rascunho do portão com a escada tomada pelas plantinhas, tudo no mesmo plano. Até que percebi que queria brincar um pouco com o que dava pra ver e o que seria escondido, fazendo do portão realmente um portal pro quintal. Então, recortei um portão, pintei seus detalhes com guache e com ele à parte teria mobilidade para dispor elementos na frente e atrás. Desenhei muitas plantinhas com lápis de cor em várias folhas, fiz a colagem digitalmente as colocando na frente e atrás do portão.
Eu dedico esse desenho à Cleres, minha avó, à toda sua força e inspiração. Nesta semana, o município em que ela mora, Morros, fez 123 anos e ela foi homenageada por seu trabalho com a educação. Sua história é marcada por difundir o poder do saber, que faz sonhos serem possíveis, que liberta a cabeça e abre a porta para as mudanças. Seu legado abraça uma casa, ajuda a semear sonhos de uma cidade e eu só tenho a agradecer por fazer parte de sua família.
Hoje mais do que em outros dias eu sonho com o bem viver que na casa quintal encontra terreno, são muitas as lutas que não cessam, mas também são vivas as vitórias e espero que a educação continue sendo legado para as seguintes gerações e assim germinando novas transformações.
De dica pra depois que essa carta for lida eu recomendo o episódio 5 da minissérie documental “Meu Amor - seis histórias de amor verdadeiro” (está na netflix), conta história de Nicinha e Jurema. Fiquei encantada com o olhar cuidadoso que as acompanhou e permitiu que a gente tivesse acesso aos seus sonhos e vida. A casa que vai sendo construída e aparece no final é um sonho que tinha que ser garantido para todos brasileiros desde o início, é um pouco da casa quintal que eu acredito.
E aproveito essa carta para agradecer por todas as trocas que tenho com minha irmã Alice, ela me acende a esperança para construções mais justas de sociedade. Obrigada por ser movimento e revolução.
E inspirada nisso tudinho de cima, meus desejos para fechar a carta de hoje:
que a gente não cesse em sonhar e lutar por uma beleza que abrace todo nosso país,
até a próxima,
Lelê