Rio de Janeiro, 2 de junho de 2021
Sabe nos filmes quando alguém dedilha as teclas do piano de forma gentil? Então, na abertura dessa carta vamos fingir que existiu esse momento, aí uma criança, que também estava na sala do piano, cantarolou uma música inventada. A gente dá corda pros versos balbuciados, e a voz que começou tímida ganha coragem, se sente confortável inclusive com o coro que a acompanha. Do fundo da sala alguém solta “essa daí tá quentinha, acabou de sair do forno”, rimos juntos e batemos palma pra performance coletiva pedindo bis.
Eu queria ter mandado esta carta em um domingo de sol, mas por aqui o último domingo foi nublado e com chuva, aí eu achei que não ia combinar. Acabei lembrando que a casa festejo, que te levei na carta do dia 21 de maio, tinha cara de domingo de sol, então, a atmosfera de hoje pode ser diferente. Como aqui agora tá friozinho, tô imaginando o cenário de bagunça intimista, tipo a entrada da carta, com piano, cantoria e risadas na sala. O que eu gosto dessa cena é o conforto e aconchego que transbordam, a segurança de poder desafinar e rir logo em seguida. No encontro com esses sentimentos as energias se recarregam, é como se um certo vazio sumisse porque foi preenchido com alimento.
Nesses dias que a gente dorme e acorda com rotinas muito parecidas é até um desafio encontrar um sabor diferente, que energize e alimente. E vale até alugar outros sentidos além do paladar pra conseguir provar momentos doces. A sinestesia fantástica de abrir o ouvido para escutar uma nova conversa (regada de arte e sinceridade) consegue fazer o som ter um gosto bom. Ou passar os olhos em imagens, pescando texturas e cores novas, traz inspiração para as próprias receitas.
O encontro real com a cozinha tem o poder de reunir todos os sentidos emprestados, o contato direto com o alimento, seu cheiro e as possibilidades de invenção fazem esse espaço ser terapêutico. E nesse rumo, hoje vamos conhecer a casa fartura:
A mesa chama, é convite para a conversa começar, ali tudo se partilha.
Muitas são as lembranças que inspiraram o desenho da casa fartura. É um olhar com carinho pra refeição que atravessa as gerações. Vem desde a quitanda do vovô Omar (que era ganha pão e também espaço pra mimar os netos), ao quintal da tia Flor, com todo mundo reunido se esbaldando nas pitombas até a cozinha da tia Gisele onde a invenção com novas receitas não para, do prato salgado à sobremesa (menção de ouro para João Pedro). E a comida tem o poder de reunir, não me esqueço de como minha mãe fazia de tudo pra almoçar com os filhos mesmo trabalhando de forma integral, ela cortava a cidade de uma ponta à outra sempre que podia pra que a gente tivesse almoço em família. E até quando estamos separados, no grupo do Whatsapp que agrega as casas de Brasília, Maranhão e Rio de Janeiro, todos compartilham a empreitada do dia, são os drinks lindos da Tia Paulinha, o cardápio potente de Soraita, a lasanha da Lulu, os doces do Luquinhas e claro, a disputada juçara com farinha - vence quem tem o melhor acompanhamento da vez.
Um mergulho rápido nesses pratos que navegam entre o nordeste, centro-oeste e sudeste:
No processo de criar esse cenário na ilustração, além dos pratos e da mesa, era necessário não deixar de fora uma das estrelas que faz tudo ser possível: a natureza. Então, uma árvore múltipla frutífera foi inventada, brotando bem no centro e sendo fonte pra novas criações.
Os materiais utilizados foram os bem conhecidos por aqui: lápis de cor e guache, esbaldando sulcos no papel e texturas únicas pra contar essa história.
Espero que essa visita tenha despertado bons sabores!
Hoje, para combinar com o tema abundante, não medi a mão na despedida, então seguem alguns links para saciar a fome:
https://www.instagram.com/ojoioeotrigo/
Desenvolvido pelo projeto jornalístico O Joio e o Trigo. Eu sou apaixonada pelo trabalho que essa equipe desenvolve, eles investigam tudo quanto é aspecto da alimentação brasileira, suas implicações políticas e culturais.
Uma visita no Botequim da Teresa Cristina: clique aqui para a playlist do programa
Neste programa o que não falta é sabor e amor! Aqui em casa a gente maratonou nos almoços de domingo, dando espaço pra arte entrar como bálsamo e despertar choro e riso.
Taurina:
Sou fã de Anelis e da forma que ela expande seu trabalho. Do álbum Taurina (que é lindo e delicioso), além de nos presentear com música ela fez um especial de entrevistas com mulheres maravilhosas. E uma das conversas que destaco aqui é com a cozinheira Kátia Lyra que tem o espaço cultural e gastronômico Casa Cuca e o projeto social Sopão das Manas. Eu me alimentei com esperança escutando falas tão poderosas. link para a conversa: taurina convida
Pensou que Anelis terminaria de nos oferecer lindezas ali?
Esbaldando amor, ela também fez o Caderno Taurina de Receitas, que é lindo visualmente e poeticamente. Dá para folhear online e fazer download gratuito. Esse projeto dá apoio e visibilidade para o negócio de impacto social Mãos de Maria, que na pandemia está sendo essencial para o combate à fome na comunidade de Paraisópolis- SP, no link do caderno tem inclusive um QR para quem quiser ajudar financeiramente.
https://www.anelisassumpcao.com/caderno
Pra fechar, fiz uma playlist especialíssima pra essa casa, se quiser seguir é só clicar:
O alimento é um presente que permite que a vida continue, que as memórias se costurem. Ter comida no prato é dignidade e direito, e neste país farto, mas imensamente desigual é também uma luta constante (e só ela muda a vida). Que nossas forças cada vez mais se agrupem, se façam gigantes e que o sonho de um horizonte mais igualitário se aproxime de forma real.
Um beijo e até a próxima,
Lelê