Rio de Janeiro, 14 de junho de 2021
A carta de hoje é sobre fim e começo. Talvez por isso foi tão difícil encará-la e mesmo previamente planejada foi postergada algumas vezes.
É a última carta que conto pra você sobre as histórias que envolvem a série Casa de Vida, mas aqui não finda minha comunicação sobre processos, arte e encucações. Existem outras séries já sendo gestadas e acredito que antes de ter algo novo fechadinho, vou voltar e usar esse canal para tagarelar na escrita que chega até você.
Desde o salto pro mergulho, essa caminhada entrando pelas casas foi de muita descoberta e um processo gradual de abertura. E de alguma forma, colhendo as palavras que por um tempo já estavam dentro de mim (pedindo pra sair) e as dispondo no papel digital, senti acolhida e compartilhando com você não me senti só.
São 6 desenhos, já escrevi, enrolei e coloquei na garrafa 5 cartas, cada uma foi lançada ao mar. Nesse percurso, você pode ter perdido uma ou outra em meio às ondas agitadas, frenéticas e aceleradas que se desenham nas telas. Como já anunciei na entrada, a de hoje fecha um ciclo, então resgato da submersão as anteriores, se por algum motivo elas não te encontraram antes: leia aqui
Como Tulipa Ruiz compôs e canta “a ordem das árvores não altera o passarinho”, então pode até embaralhar os escritos e criar o próprio trajeto de visita a cada casa, as portas e janelas estão abertas pra te receber.
O voo por aqui nem sempre foi tranquilo, nuvens turbulentas fazem companhia, infelizmente tem momentos que tomam conta do céu. Carregadas se multiplicam com força, aumentam de tamanho, precisam chorar para depois se dissipar, só assim conseguem dar espaço pra brisa e o vento para de anunciar tempestade.
Antes de escrever aqui pra ti, eu tento me alimentar ao máximo de referências e sentimentos que se relacionem ao desenho do dia. Mas como já te disse em outras cartas, este processo não é descolado do que senti recentemente, a realidade atravessa e aponta seus sentidos e direções. Houve dias que consegui externalizar e te convidar a percorrer por um caminho que não falava de dor, de medo, de raiva e indignação. Essa última semana veio acompanhada de nuvens, e mesmo depois do choro rasgar o céu com toda sua intensidade, ainda grita o vazio e o estrago que fica depois do temporal.
“Buraco no peito, no plexo, no céu da boca, na garganta, na planta do pé por cada vida, por cada pessoa atingida por tiro disparado.” - versos retirados de um texto de Tulipa Ruiz publicado em 2019
soma de buracos: que tira o equilíbrio,
que dá nó na garganta,
que provoca dor e
abala a esperança.
Ecoam também na minha cabeça os versos de Cartola:
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Nesta última semana, sonhos foram enterrados. Os sonhos de Kathlen, os sonhos de sua família e diante dessa dor o país não parou. O moinho continuou.
A morte se mostra como imperativo e em seu acúmulo e direção (onde geralmente levanta o véu de forma mais frequente), perversamente é regida por senhores que buscam tornar sua aparição banalidade. É o dono do meio de comunicação que aponta a linha editorial, faz rodeios na manchete, diz o que é notícia e o que não é, o que pode ocupar a capa, o que fica no rodapé. É o cara que no momento atual ocupa a cadeira de governador, que autoriza que a polícia seja mais sanguinária do que nunca, batendo os recordes de corpos pretos no chão e sangue derramado. É o empresário que entendeu agora que tem que seguir “a tendência” (?), se não falar que é antirracista pode perder consumidor, mas como sempre e em qualquer temática que busque se envolver é regido pelo capital, o quanto seu bolso pode lucrar com a mensagem é mais importante, a vida sempre é secundária, principalmente de quem compõe a base de seu negócio.
Imaginar futuros que possam subverter esses senhores, que os vençam, é muito difícil. Mas igualmente urgente e necessário.
Minha irmã resgatou uma memória de uma leitura que fez de Paulo Freire um ano atrás, destacando a seguinte frase:
O mundo não é, está sendo.
Deixará de ser terror, deixará de ser dor. Esse é o meu sonho e sei que sonhado sozinho é bem difícil de ser alcançado, por isso peço que a gente partilhe dele.
A visita de hoje caminha no sentido do que pode ser, nesse rumo vamos conhecer a casa sonho.
A semente vem desde a infância, fase em que ela é mais regada, alimentada e acompanhada. A fé no futuro ajuda a germinar. Mas a rega tem que ser diária, assim, aos pouquinhos cresce. Floresce e se torna verdade o que já foi só imaginação.
Para representar esse sentimento resgatei o desejo de quando era criança: a casa na árvore. Sempre tive essa fantasia influenciada pelos múltiplos desenhos que assisti, que seus personagens tinham seu próprio esconderijo e mundo protegido.
Na janela aqui de casa tem uma árvore e juro que não tinha pensado nela, mas de tanto ser presenteada por sua presença, que acolhe passarinhos e transmite calmaria, ela se imprimiu e apareceu na representação. E de certa forma, a casa que hoje habito é realização de muitos sonhos, a Amendoeira já faz parte dela, não consigo imaginar a vista da janela sem sua companhia.
Acabou que eu desenhei uma árvore e uma casa, mas existe uma floresta que abriga a vila dos sonhos. Lá moram todos os desejos coletivos, as esperanças fazem ronda os protegendo. Tem os sonhos da família Vieira Lima, que acabei contando nas cartas anteriores, tem os seus sonhos lá também. Cada vez que as árvores crescem e se fortalecem, as casas ganham mais cor, os sonhos se tornam mais vívidos.
Eu fiz esse desenho com aquarela, técnica que ainda não domino muito bem, cometo meus tropeços ainda, mas gostei de como ela se espalhou no papel. Agradeço pela turma querida que tive a sorte de encontrar, de aprender junto e me presentearam com um estojo de tintas que fez esse desenho ser possível.
Agradeço a você por ter me acompanhado até aqui. Lembra, isso não é uma despedida, é um até logo! Como sempre, tento que o nosso encontro dure + um pouco, te indico coisas que planaram na minha cabeça, que em outros momentos me permiti mergulhar.
Hoje abram seus corações e ouvidos para a palavra e som do Baiana.
O último álbum da Banda Baianasystem: todos seus 3 atos agrupados em OXEAXEEXU
Pra mim, essa banda é uma das expressões musicais mais importantes que existe no país hoje.
E mais do que só escutar o resultado do trabalho (que eu tenho colocado no repeat constantemente e tem me ajudado a atravessar os dias e semanas), eles são muito generosos e compartilharam o processo criativo, os encontros que possibilitaram a criação de cada canção, o fluir e o desapego, as coincidências e as palavras que já estavam guardadas no coração, escutei e mergulhei:
são 3 vídeos, um destrinchando cada ato criado, o respeito e a maturidade que imprimem e reverenciam seus mestres se traduz com muita emoção, mesmo que você talvez não simpatize com o estilo musical da banda, recomendo muito essas entrevistas:
Ato 1
Ato 2
Ato 3
É o entendimento do Brasil que pode ser chamado de país, que se reconhece parte do continente Sul-Americano, olha pro lado, se acolhe na vizinhança e assim também se fortalece. Os futuros possíveis que a arte em vanguarda clama e desenha.
Pra fechar de vez a despedida tenha um pequeno presente simbólico: é a casa sonho para colorir, os contornos do desenho que apresentei hoje em A4, se quiser imprimir e preencher da forma que combine com seus sonhos pode baixar aqui <
E agora que findamos sobre os bastidores de Casas de Vida, em brevíssimo eu retorno te convidando para conhecer a lojinha que vai abrigar os desenhos e objetos que nasceram desse processo.
Sonhemos juntos,
se cuida, até a próxima,
Lelê